Palavras ao Vento é fruto de uma necessidade interior de corrigir deslizes orais ou escritos, presenciados no cotidiano; mostrar a urgência de se fazer da educação prioridade nacional; discorrer sobre trivialidades, mostrando o porquê disso ou daquilo e destacar a força que a palavra tem naqueles que captam o sentido das entrelinhas.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
*Uma música distante, texto para o João
João! Este é o texto com final feliz! Faz um comentário do que achaste do fim que aqui apresento.
O sol ainda nem acabara de se espreguiçar no horizonte enquanto tênues pingos de chuva construíam uma espécie de teia multiespectral no espaço. Espalhados por um vento leve, bordavam o céu com minúsculos diamantes, tornando o crepúsculo matutino ainda mais belo ao se associarem aos tímidos raios de luz que enfeitavam a aurora. Não muito longe, um galo seresteiro pressagiava que o calor se anteciparia à água que vacilava em se lançar aos borbotões, espremida entre nuvens e ar. O canto insistente ressuscitava uma época rediviva na ave canora, mantida cativa em algum apartamento de interioranos que a trouxeram para a cidade, com o intuito de amenizar a saudade de um passado que, possivelmente, não almejavam esquecer. Aos poucos, abriram-se as cortinas do dia e a chuva ensaiada, em fuga, dera lugar a uma ensolarada manhã.
Duas janelas do edifício imponente, que sombreava a praça, escancararam-se como se movidas pelas mesmas teclas de um controle remoto manuseado pelo tempo. Que estranha mágica esse terrível controlador da vida e da morte lhes pregara para fazê-los compartilhar do mesmo espaço e não se identificarem? O homem, viúvo recente e sem filhos. A mulher? Já nem mais sabia que nome dar a sua condição social. Estado de direito, estado de fato, estado civil? Nem solteira, nem casada. Uma coisa! Em que tinha certeza era na vida, na amizade, na capacidade meio tardia de se reinventar e se reconstruir.
Acreditava ainda no amor com a mesma intensidade ingênua da adolescência; nos homens, não. Desgastara muitos anos de vida, dedicando-a a um estranho que aprisionara no pensamento, nunca reencontrado, mas levando-a a aceitar, rendida, um outro ser que a fizera deixar de querer uma vida diferente e melhor. Teria sido a mesmice, a aceitação do egoísmo do companheiro ou o medo, pacientemente injetado pela mãe, que a tornara submissa e temerosa em abrir as próprias asas e lançar-se à vida em busca de novos ventos? Somente agora se dava conta da passagem implacável dos anos. O espelho, no entanto, ainda revelava uma linda mulher. Rosto expressivo, olhos de um incrível azul celeste, sorriso de menina, cabelos bem cuidados, corpo esbelto, pernas bem torneadas, reluzentes como seda. Tudo nos devidos lugares. Uma leve insinuação de celulite estrategicamente escondida sob as partes internas das coxas. Nada que não pudesse escamotear de olhar mais desatento.
A música suave esbaldava-se pela janela aberta, ansiando por novos ares e sensíveis audiências. As flores, recostadas nos jardins da praça, ainda bocejantes, abriam-se tímidas, despertadas pelos primeiros raios do sol que já anunciava a Primavera. Em seu colorido exuberante, rosas, jasmins, amores-perfeitos e até as florezinhas silvestres pareciam sorrir aquecidas pelos incipientes reflexos luminosos. Ao mesmo tempo em que ensaiavam uma estranha dança, coreografada pela suave brisa matutina, insensíveis ao cacarejar do galo, descoordenadas, seguiam a sutil musicalidade oriunda do apartamento em frente. Do 312, subitamente, passou-se a ouvir a mesma música da morada oposta, Love me tender, orquestrada. As notas suaves da canção escapuliram pelas frestas da porta e se acomodaram sem pedir licença, nas lembranças dos vizinhos moradores.
Por inexplicável coincidência, ambos ficaram quietos e vivificaram aquele baile iniciado com o tradicional New York New York. O cavalheiro, destemido, moveu-se na cadeira, elevou o tronco, ciente de sua masculinidade. Um deus apolíneo. O olhar penetrante se volveu para a loirinha desconhecida, sentada em frente à orquestra. Ao iniciar Love me tender, endireitou os ombros, levantou-se como um touro bravo, instigado pelo aparente desinteresse da moça e se aproximou arrogantemente. Convidou-a para dançar. Os dois, embalados pelo som romântico da melodia, pareciam navegar por mares revoltos ou flutuar sobre nuvens perdidas no espaço. Amor à primeira vista ou canção impulsionadora do romantismo? Não sabiam... Naquele momento, entre os dois, só havia o desejo e o amor. Desejo de não mais se separarem, amor pelo sentimento se espargindo deles.
Súbito, o mesmo destino que une e separa pessoas, lançou sobre os dois bailarinos o seu catastrófico manto. Do emaranhado de fios, displicentemente ligados para gerarem a energia sonora do baile, faíscas crescentes tomaram conta do palco. Engalfinharam-se no etéreo tecido das cortinas e, alimentadas pela decoração feita em papel crepom, cresceram em labaredas irrequietas que se alastraram para as belas luminárias do salão. Aos poucos, a magia tétrica do fogo foi tomando conta de tudo. Correria geral. A pequena cidade, em pânico, aterrorizava-se e se via envolvida por uma claridade intensa, aquecida pela fogueira que consumia a bela edificação social em que o clube funcionava. Aos gritos, chamando-as pelos nomes, buscava pelas primas, enquanto se dirigia ao carro deixado por elas perto da praça. As duas já a esperavam. Uma, chorando. A outra, rindo meio embriagada ou nervosa pelo inesperado acontecimento.
Apressadas para fugirem do incêndio que, rápido, ia se alastrando, alimentado por um vento que nascera com a madrugada, ganharam o asfalto. Ainda incrédulas com o que acontecera, rumaram para as suas casas, distantes uns bons quilômetros daquela pequenina cidade, cujo endereço fora encontrado pelo espírito aventureiro da garota mais velha. No caminho de volta, as primas comentavam se não teriam sido movidas pelo egoísmo e fugido daquele jeito sem se preocuparem como tudo terminara. Teriam apagado o fogo, houvera vítimas? Na mente de Mariana, Love me tender ecoava sem parar. Junto com a música, aparecia o rosto, o destemor, o nome dele (César Augusto) e parecia-lhe ouvir o tum tum do outro coração batendo de encontro ao dela num ritmo descompassado da canção de amor. Não lembrava se lhe anunciara o próprio nome.
Nunca mais se viram, mas, na mente deles, acomodara-se, em definitivo, aquela música, aquele baile e a forçada separação. Nele, ficara a saudade do que não acontecera. Nela, a inquietação e a busca insôfrega de um estranho sentimento que se lhe apossara sem cerimônia. Talvez residisse, no nefasto acontecimento do passado, a aceitação do compartilhamento de vida com quem não amava e por quem sabia não ser amada como sonhara. Sem se dar conta, passou a associar o mesmo rosto do jovem perdido no passado ao do vizinho do apartamento 312. Quem sabe, um dia, tomaria coragem e lhe pediria emprestada uma xícara de açúcar, farinha talvez. Ou o convidaria, despudoradamente, para dançarem aquela música distante perdida no tempo, cujos acordes nunca deixara de escutar.
E se não a reconhecesse? O que faria dos anos de inconsciente espera que a consumiram? Lá fora, a noite antecipava violento temporal. As horas escorriam lentas, travadas pela angústia e pela expectativa de que o sol acordasse a manhã. Raios tingiam de ouro o céu enegrecido. Por breves e repetidos instantes, a noite se metamorfoseara em dia, tal era a claridade gestada pela fúria da natureza, como se destemido artesão enfeitasse a noite com incríveis fogos de artifício. Na mente dela, trovões repetiam um nome e o coração tamborilava aquela música num ritmo alucinante, cuja cadência se confundia com a irregularidade da respiração e do tumultuado sono. Revirava-se na cama. Nos esparsos momentos de sonolência, revia aquele baile. Em pesadelo, as labaredas, espalhadas pelo salão, fugiam dele e se lhe adentravam o cérebro, esparramando-se pelo quarto. Para se acalmar, fez tocar, no diminuto aparelho de som, à cabeceira da cama, a canção recolhida do passado, que gemia como uma súplica em busca de socorro ao desespero e solidão.
Finalmente, uma tênue claridade despertara-a em sobressalto. O galo caipira, com seu cocoricó teimoso, anunciava um novo alvorecer. Tateando sob a cama, encontrou as chinelinhas de veludo. No banheiro, deixou escorregar ao chão a camisola de seda. Vestiu a roupa escolhida no fim da tarde anterior. Higienizou-se apressada. Reuniu a loira cabeleira e amarrou-a displicentemente. Uma leve maquiagem camuflou a noite mal dormida. Ouvidos atentos, pressentira o único toque da campainha. Abriu a porta com o coração em fúria.
Só uma palavra pronunciada com ênfase: - Mariana?
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