terça-feira, 8 de março de 2011

Às mulheres, arautos portadores de todas as cores


Já tive grandes emoções na vida. Já chorei assistindo a um filme, lendo sobre o sucesso de amigos, ouvindo o telefonema de cumprimentos por algum feito meu. Derramei prantos inconsoláveis com o anúncio de falecimento de um ente querido ou pelo surgimento de uma nova vida. Já chorei de tristeza e de alegria, entretanto, as lágrimas, que me causaram o maior desconforto, foram as geradas pela indignação e pela piedade. Lágrimas que me encharcaram o coração, embaralharam-me o estômago e eclodiram como bombas de hidrogênio, apertando-me, em nó, a garganta.

Empreendia a viagem de retorno à minha cidade, depois de uma de minhas palestras, feliz pelo sucesso pessoal e profissional. Disfarçadamente, ao me recordar dos aplausos em pé dos assistentes, sorria e me deixava embalar, sonolentamente, pelo movimento do ônibus. Estava bebericado o melhor dos néctares da vida. Nada poderia embaçar a minha felicidade.

O vento assobiava com fúria, entabulando um estranho dueto com o tamborilar da vidraça, atritando-se de encontro ao umbral do veículo. Em outras viagens, isso teria me causado desconforto. Naquela, não! Estava por demais feliz para deixar-me abater por esses pequenos infortúnios. A viagem parecia tranquila.

Tudo aconteceu num derrapada brusca do ônibus ao enfrentar uma curva. Um “para, vó!” estridente e sofrido, ecoado pela voz de uma criança, despertou os passageiros que dormiam ou fingiam dormir. Inclusive, eu. O que causou estranheza ainda mais ascendente foi o “Cala boca, piá! Tu vai ver o que te espera lá em casa!” proferido por voz adulta e cheia de rancor.

Todos os meus sentidos se acirraram porque, quando alguém pronunciou “vó”, lembrei-me de meu netinho, o Andrei, um garotinho esperto, amoroso e lindo. Naquele momento, senti como se ele estivesse em perigo. O silêncio retornou ao ônibus. A cena, certamente, não se repetiria. Veio-me à mente uma frase escrita por Luís Fernando Veríssimo. “O bem acaba sem recompensa, e o único castigo do mal é nunca acabar.”

A cena era uma daquelas típicas em que o mal vai se alojando devagarzinho, mas com força suficiente e capaz de abater os mais frágeis. O que presenciaria, junto com os demais passageiros, era uma contenda entre a maldade e a ternura. Tudo se passou tão rápido que a revolta, que em outra situação se apossaria de todos, tomou a forma de estarrecimento e silêncio. Aconteceu assim como vou contar, sem nenhum exagero, mesmo que as tintas geradas pelo inusitado pudessem ser bem mais carregadas.

Sem que ninguém esperasse, o menino, que dera o estranho grito de ‘para, vó’, pulara lépido do assento ocupado ao lado de uma mulher ainda jovem. Os olhos de um azul tão límpido como um céu sem nuvens denunciavam um medo, (terror seria mais aproximativo do que demonstrava) tão inapropriado no olhar de uma criança. Provavelmente, não teria mais do que quatro anos ou cinco.

Os cabelinhos compridos e dourados reluziram de encontro à luz que se infiltrara por uma fresta da cortina semicerrada. Um anjo caído do céu diria o poeta. Para mim, um anjinho que fugia das garras de um demônio.

Entristecida, acreditei que a horrível cena findaria ali. O pesadelo ganhou fôlego e já se enquadrava em tragédia, quando a diabólica avó levantou-se em fúria e puxou o garotinho pelos longos e delicados cabelos, ao que foi seguido por um grito desesperado do menino. Não satisfeita, a mulher, avançando sobre ele, agarrou-o com uma força desmedida para a fragilidade dela. Puxou-o, outra vez, para os lugares em se assentavam.

Ninguém reagira. Talvez estupefatos demais com o presenciado.

O que todos, imagino, esperavam era o fim daquele triste incidente. Que nada! Desta vez, ouvia-se o estalar de tapas e, pela seca sonoridade, deveria estar sendo efetivado no rosto do pequeno. O choro que se seguira, denunciava que o garoto estava acostumado àquele tipo de violência. Era um pranto carregado de tristeza e conformismo.

Como a criança não parava de chorar, a desnaturada avó proferiu um trágico “Cala essa boca, desgraçado! Tu me saiu dengoso e chorão como a infeliz da tua mãe. Ainda bem que morreu!”. Foi, no momento em que ouvi isso, que os instintos de mãe, burilados pela condição de avó, agiram como uma mola prestes a eclodir. Naquele fatídico instante, entendi tudo. Aquela criança deveria ser filha de alguém filho daquela megera e que fora gerado contra a vontade dele, o que desgostara a abominável dama. Ao morrer a nora, a atitude dela, deixou o menino triplamente órfão: de pai, de mãe e de avó.

Tenho por hábito jamais me envolver com a vida dos outros, todavia, presenciado tanta maldade, visto que o menino gritara um ainda mais desesperado, “Não me judia, vó!”, levantei-me e me dirigi, cambaleante, que tanto poderia ser ocasionada por uma incontrolável vontade de rapidamente agir ou pelo agitar do ônibus em movimento, até onde os dois estavam sentados. Tentando manter-me serena e controlando o tom da voz, embora um turbilhão de raiva estivesse prestes a tomar conta de mim, perguntei por que maltratava tanto aquela indefesa criatura. Foi o estopim!

A mulher me olhou, mantendo nos lábios um sorriso que mais parecia um deboche e articulou estas palavras: “Não te mete! Mas se tu quer, fica com este desgraçado!” Ainda mais estarrecida, questionei o porquê de tanto ódio contra aquele menino tão lindo! A mulher, creio que se sentindo aliviada por poder justificar todo o seu rancor, começou a falar alto e deixando perpassar extremo nervosismo.

O que vou relatar nunca pude esquecer e, sempre que vou tomar alguma iniciativa que me cause desconforto ou me induza a pré-julgamentos, retenho-me e reflito se deverei dar continuidade à ação. A mulher começou, deste jeito, o seu relato:” Esse guri foi a herança que o meu único filho deixou pra mim. Ele, a mulher e a mãe dela vinham de uma festa, bateram num caminhão e morreram os três. Faz uma semana!” E continuou: “Eu odiava aquela alemã sem-vergonha ! Engravidou de meu menino só pra ele casar com ela. Foi ela e a desavergonhada da mãe dela, que carregaram o meu filho para aquela maldita festa e deixaram ele beber!” Dito isso, desatou em quase histérico pranto.

Compreendi tudo. A angústia que sentira por me ver envolvida naquela triste situação, misturou-se com tristeza e compaixão por aquela infeliz e desamparada senhora. O destempero com que tratava o garotinho era fruto de seu inconformismo e revolta pelo desaparecimento tão trágico e inesperado do único filho. Sobre o orfãozinho, descarregava toda a revolta e transferia-lhe o ódio sentido pela mãe dele.

Nenhum sofrimento, por maior que fosse, poderia dar guarida a ações centradas no ódio e na maldade, todavia senti uma enorme ternura por aquela infeliz mulher. Deu-me vontade de dizer que a entendia e que desejava tornar-me sua amiga. Senti vontade de beijar-lheo rosto e confirmar que chorava por ela, pelo filho morto e por sua desgraça. O pudor pelo inesperado do encontro amordaçou-me os lábios . A voz e o gesto foram abortados no âmago da boca  e da intenção. Calei-me, porém a vontade de chorar e abraçá-la ia se acercando de mim. Naquela hora, era a voz do coração sendo vencida pelos sussurros da  razão.

Pus-me no lugar dela, procurei imaginar como reagiria se perdesse um dos meus filhos e como estaria me sentindo ao ter que recomeçar a vida, caso precisasse criar mais um ser que eu não gerara. Sem outra ação que não fosse a de carinho, pedi licença para pegar o menino e sentar-me ao lado dela.

O menino olhou-me e passou-me a suave mãozinha no rosto. Carente de atenção e afeto. Um anjo. Mesmo. Comovida, abracei-o. Para minha surpresa, a mulher dura e implacável de antes, acercou-se de mim, chorando baixinho. Mais calmas ambas, ouvi o longo relato  da maneira trágica como perdera o marido e, viúva muito jovem, contou  como fora difícil educar sozinha o filho e custear-lhe os estudos na faculdade de Medicina. Narrara, com detalhes, como fora ainda mais sofrida a aceitação do casamento dele, às pressas, e com que não gostava. Nem ela. Nem ele.

Depois de ouvi-la por longo tempo, procurei demonstrar-lhe que a entendia e com ela me solidarizava. Uma vez conquistada e em mim confiando, argumentei que aquele menino era  quem lhe daria novas motivações para viver. Que era a continuidade dela e do filho desaparecido e de que só demonstraria isso, se transformasse a perda em aceitação e afeto. Fui além, frisei que só o amor seria capaz de abrandar o ódio que sentia, não pelo menino, mas pela vida que lhe fora tão injusta e adversa. Conversamos  muito e juntas choramos.

Como terminou essa triste história, não sei. Sem nos darmos conta, porque o tempo passara rápido demais, chagamos a Santa Maria. Apressadamente e ao perceber ter chegado ao destino, pediu-me ajuda, permanecendo com o menino, enquanto reunia a enorme bagagem. Com o garotinho no colo, como se fosse meu filho, permaneci com ele até a hora da despedida. Na Rodoviária, esperava-a uma amiga, comadre e vizinha, conforme rapidamente me informou. Acompanhei-as até o ponto de táxi, carregando o garotinho. Despedimo-nos emocionadas. Mais parecíamos velhas e afáveis amigas, cujo conhecimento parecia ter sido alimentado por longa data.

Quando os três tomaram o táxi que os conduziria ao derradeiro destino e este partiu,  dei-me conta de que nem ela e nem eu nos informáramos de nossos nomes e nem de nossos endereços. Não perguntara como se chamava o menino. Provavelmente, Gabriel. Tentei acenar-lhe para que detivessem o carro em que partiram, para lhes perguntar os nomes e como os encontraria para lhes prestar ajuda, caso precisassem. Era tarde demais. Rapidamente, desapareceram. Apenas vi um tímido aceno e ouvi um obrigada.


Sempre que viajo, lembro-me daquele menininho e daquela avó. Penso em como terminara aquele drama e imagino se o que falei a ela, ter-lhe-ia causado alguma mudança na conduta e favorecido a aceitação daquele neto e da rasteira que a vida lhe dera. A lição que o melancólico encontro me deixou é de que não temos o direito de julgar os outros sem antes lhes conhecer a outra face da verdade.

Hoje, pensando nessa triste avó, homenageio a todas as MULHERES! As felizes e as infelizes. A esses seres muito especiais que sabem criar e recriar a vida como arautos portadores de todas as cores, felicidades sempre.

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