sábado, 25 de setembro de 2010

Um texto em dois capítulos

João Lucas! Amigo querido, eis mais um texto que estou reeditando para satisfazer o pedido que me fizeste.

Por ser longo, dividi-o em dois capítulos. Espero que não te importes. (Fiquei feliz por me informares que os estás imprimindo e guardado-os com cuidado. Com tua atitude, encorajei-me e os estou guardando também.)


*Uma música distante (Parte I)

O sol ainda nem acabara de se espreguiçar no horizonte enquanto tênues pingos de chuva construíam uma espécie de teia multiespectral no espaço. Espalhados por um vento leve, bordavam o céu com minúsculos diamantes, tornando o crepúsculo matutino ainda mais belo ao se associarem aos tímidos raios de luz que enfeitavam a aurora. Não muito longe, um galo seresteiro pressagiava que o calor se anteciparia à água que vacilava em se lançar aos borbotões, espremida entre nuvens e ar. O canto insistente ressuscitava uma época rediviva na ave canora, mantida cativa em algum apartamento de interioranos

Duas janelas do edifício imponente, que sombreava a praça, escancararam-se como se movidas pelas mesmas teclas de um controle remoto manuseado pelo tempo. Que estranha mágica esse terrível controlador da vida e da morte lhes pregara para fazê-los compartilhar do mesmo espaço e não se identificarem? O homem, viúvo recente e sem filhos. A mulher? Já nem mais sabia que nome dar a sua condição social. Estado de direito, estado de fato, estado civil? Nem solteira, nem casada. Uma coisa! Em que tinha certeza era na vida, na amizade, na capacidade meio tardia de se reinventar e se reconstruir.

Acreditava ainda no amor com a mesma intensidade ingênua da adolescência; nos homens, não. Desgastara muitos anos de vida, dedicando-a a um estranho que aprisionara no pensamento, nunca reencontrado, mas levando-a a aceitar, rendida, um outro ser que a fizera deixar de querer uma vida diferente e melhor. Teria sido a mesmice, a aceitação do egoísmo do companheiro ou o medo, pacientemente injetado pela mãe, que a tornara submissa e temerosa em abrir as próprias asas e lançar-se à vida em busca de novos ventos? Somente agora se dava conta da passagem implacável dos anos. O espelho, no entanto, ainda revelava uma linda mulher. Rosto expressivo, olhos de um incrível azul celeste, sorriso de menina, cabelos bem cuidados, corpo esbelto, pernas bem torneadas, reluzentes como seda. Tudo nos devidos lugares. Uma leve insinuação de celulite estrategicamente escondida sob as partes internas das coxas. Nada que não pudesse escamotear de olhar mais desatento.

A música suave esbaldava-se pela janela aberta, ansiando por novos ares e sensíveis audiências. As flores, recostadas nos jardins da praça, ainda bocejantes, abriam-se tímidas, despertadas pelos primeiros raios do sol que já anunciava a Primavera. Em seu colorido exuberante, rosas, jasmins, amores-perfeitos e até as florezinhas silvestres pareciam sorrir aquecidas pelos incipientes reflexos luminosos. Ao mesmo tempo em que ensaiavam uma estranha dança, coreografada pela suave brisa matutina, insensíveis ao cacarejar do galo, descoordenadas, seguiam a sutil musicalidade oriunda do apartamento em frente. Do 312, subitamente, passou-se a ouvir a mesma música da morada oposta, Love me tender, orquestrada. As notas suaves da canção escapuliram pelas frestas da porta e se acomodaram sem pedir licença, nas lembranças dos vizinhos moradores.


Por inexplicável coincidência, ambos ficaram quietos e vivificaram aquele baile iniciado com o tradicional New York New York. O cavalheiro, destemido, moveu-se na cadeira, elevou o tronco, ciente de sua masculinidade. Um deus apolíneo. O olhar penetrante se volveu para a loirinha desconhecida, sentada em frente à orquestra. Ao iniciar Love me tender, endireitou os ombros, levantou-se como um touro bravo, instigado pelo aparente desinteresse da moça e se aproximou arrogantemente. Convidou-a para dançar. Os dois, embalados pelo som romântico da melodia, pareciam navegar por mares revoltos ou flutuar sobre nuvens perdidas no espaço. Amor à primeira vista ou canção impulsionadora do romantismo? Não sabiam... Naquele momento, entre os dois, só havia o desejo e o amor. Desejo de não mais se separarem, amor pelo sentimento se espargindo deles.



Continua amanhã.

2 comentários:

  1. Olá, Arlete, amiga muito querida, estou muito feliz por você ter acrescentado mais um texto apedido (meu) e estou tambem ansioso pelo desfecho do "Uma música distante" Estou amando está Parte I. Obrigado e parabéns mais uma vez pela maravilha dos pps.
    Abçs.
    João Lucas

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  2. Bom dia, João Lucas!
    O meu domingo ficou ainda mais bonito depois de ler as tuas palavras, motivos suficientes para eu continuar com o Palavras ao Vento.
    Agradecidíssima fico eu.
    Que tenhas também um belíssimo domingo.
    Abraços.

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