quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Histórias que vivi 7

Desde os primeiros anos de minha escolarização, o meu maior sonho era ser médica. Credito à história, que narrarei a seguir, a descoberta de minha vocação como educadora. Foi no desenlace do acontecido que pude verificar uma realidade que não ouso questionar: quando deixamos falar o coração, mesmo devendo calar a razão, o sucesso do que nos propomos realizar ou decidir é cem por cento garantido.

Era o segundo ano que atuava como professora no curso noturno do Cristóvão Pereira, a melhor escola estadual da cidade. Caíra no magistério de paraquedas, ou seja, por ter domínio do francês, que aperfeiçoara na "Aliança Francesa, cursado em Santa Maria, fui convidada a lecionar esse idoma naquele colégio. Com jeito e cara de menina, era muito jovem, mas adulta no modo de agir. Sem nenhuma chance de erro, era bem mais nova do que a maioria de meus alunos. Fazia de tudo para não cometer deslizes e me ver desmoralizada junto a eles.


Como a maioria dos estudantes da turma, em que este fato aconteceu, era de adultos, muitos deles e delas, alguns já casados e todos, para cursarem o curso noturno, deveriam trabalhar durante o dia. Por essas razões, manter o interesse e a disciplina era uma atividade fácil e prazerosa.

Na metade do ano, transferido de Porto Alegre, apresentou-se um jovem, se não me engano, com a minha idade. E metido a gostosão. Segundo as más línguas, era chegado a uma caninha. Outros afirmavam que viera da capital “corrido” pelos pais por ser usuário de drogas. Difícil de acreditar, pouco comum naqueles tempos, mas... Como nas redondezas da escola havia um bar, fora informada por alguns colegas de que ele “matava” aulas para “molhar o bico” naquele estabelecimento.

Fui convocada para uma reunião de professores, aqueles encontros chatérrimos que só servem para massagear o ego dos chefões da escola, porque, se dessem lucro, a educação, no Brasil, pontuaria entre as melhores do mundo. O contrário é uma realidade gritante. Sair-se bem nos estudos, naqueles tempos, o mérito não era creditado só aos professores. Os alunos faziam por merecer o aprendizado e se esforçavam para progredir. Caso contrário, a reprovação era a única certeza.

Foi nessa reunião que recebi, junto com os demais professores, a informação da diretora, a que todos deveríamos, religiosamente, cumprir, de que, a partir do mês de setembro, os portões da escola manter-se-iam fechados no período de aulas, inclusive no noturno. Recebera queixas de que muitos estudantes estavam se embriagando no bar e Henrique, este era o nome do novato, era um deles. Foi incisiva: nenhum aluno poderia abandonar as salas de aula e o recinto escolar a não ser por motivo muito bem justificado.

O dramalhão aconteceu numa noite de chuva. Lá fora, os raios brincavam de esconde-esconde e os trovões gritavam: achei! A estrondo destes era tamanho que a luz apagara-se várias vezes. Todo mundo sabe o quanto os alunos e entre eles eu (não vou fingir, pois, para santa, nunca tive vocação!) ficávamos torcendo que a luminosidade não retornasse para podermos voltar para casa mais cedo.

Para azar de todos, a luz retornou. Estava no meio da aula, quando o Henrique pediu para sair. Alertei-o de que não lhe daria permissão. O jovem mancebo deve ter sentido os brios arranhados. Com a maior arrogância, disse-me assim com todas as letras: “Eu vou sair! Tu deixe ou não!” Foi naquela hora que eu me testei: se eu tiver que continuar como professora, tenho que achar uma saída! Sabia, de antemão, que o guri queria era ir até o bar. Um dilema. Se o deixasse sair, estaria me desmoralizando com os estudantes e dar-me-ia mal com a diretoria da escola. Tentei argumentar que a aula logo findaria.

Que nada! O rapaz estava irredutível! “Se eu não sair, vou mijar aqui na sala!”, disse quase gritando. Eu: “Então, mija!” Sem a menor cerimônia, o jovem mal educado e rebelde, dirigiu-se ao fundo da sala e concretizou o prometido. Silêncio geral. Só se ouvia o barulho da urina de encontro à parede. Aos meus ouvidos soava com a mesma intensidade dos trovões que rosnavam no céu, tirando a calma da noite.

O que fazer? Naquele tempo, expulsava-se aluno da escola por qualquer motivo e o que Henrique estava fazendo, ultrapassava os limites da decência e dos bons costumes. A classe inteira fazia silêncio absoluto. Os alunos apenas me olhavam e eu olhava para eles. Acredito que mais branca que o mais branco dos fantasmas.

Foi no momento de desespero que ouvi, ressoando no corredor, a voz da Vanda, uma funcionária encarregada da faxina e com quem mantinha profundas relações de afeto. Dirigi-me à porta, percebi que estava com balde, pano e vassoura nas mãos. Chamei-a e lhe pedi que me emprestasse as “armas de trabalho”.

Fingindo uma calma que jamais imaginei ter, com balde e pano de faxina nas mãos, caminhei até o aluno mijão, dizendo-lhe sem vacilar: “Agora, por favor! Pega este pano, este balde e limpa a porcalheira que tu fizeste!” Pego de surpresa, pois acredito que imaginara que eu iria chamar alguém da direção para resolver o impasse, sem retrucar, apanhou o pano e começou a limpeza.

Ouvia-se a respiração ofegante dele, o barulho da água retornando ao balde quando torcia o pano. Retumbava aos meus ouvidos como um som de tambor africano em tempo de guerra, associado ao martelar rápido e incontrolável de meu coração. Repetiu o ato calmamente e por várias vezes como se estivesse a me provacar. Foi o erro estratégico dele.

Enquanto assim agia, pude raciocinar e controlar o meu disparado coração, que, àquelas alturas, há muito chegara ao pódio da vitória. Depois, caminhando em minha direção, articulou em voz baixa: “Pode me levar pra direção!” Associei o recado dele como um desesperado pedido de socorro. Por termos quase a mesma idade, naquele momento, entendi o que poderia estar sentindo.

Com as palavras mais suaves que consegui articular, consegui dizer: “Tu já foste desculpado, quando concordaste em limpar a tua própria sujeira.” Foi então que ouvimos o rumor de palmas. No início, tímidas, depois, num crescente, soavam como o som dos trovões que se misturavam à chuva que caía lá fora.

Chegando perto de mim, acreditei que iria me bater ou agir de modo agressivo. Mas não! Estendendo as duas mãos espalmadas como quem reza, pediu-me desculpas. Um a um, todos os colegas se levantaram e, abraçando Henrique, diziam-lhe alguma coisa. Depois, acercavam-se de mim, elogiando o meu desempenho e o final feliz de uma situação que poderia ter se tornado desastrosa.

Então, comovida, percebi que ali era o meu lugar. Descobrira, finalmente, a minha verdadeira vocação. A Medicina, com que tanto sonhara, era, a partir daquele momento, uma página virada em minha vida.

O Henrique?

Formou-se, casou e foi cuidar da farmácia de um tio em Santo Ângelo. Se teve filhos, não sei. Por muitos anos, às vésperas de Natal, recebia um lindo cartão com significativa mensagem e que encerrava sempre com estas palavras: "Minha Salvadora! Abraços. Henrique". Escondia, com extremo cuidado, o doce agradecimento desse aluno com medo de ser mal interpretada por meu ciumento marido.

Já faz um bom tempo que não recebo mais esses mimos dele. Senti-lhe a "ausência" na mesma intensidade de quando se perde um grande amigo. Em cada Natal, lembro-me com carinho dele e me dou conta do que afirmei no início deste relato. "O coração tem razões que a própria razão desconhece".

Na noite mágica natalina, em que as pessoas se sentem seres especiais e privilegiados, feliz, abraço os meus afetos, mas uma incômoda dúvida reaparece: "Henrique se esqueceu de mim ou terá morrido?"

2 comentários:

  1. Amiga! Este foi demais. Cada texto que escreve, mais me convenço que deve escrever um livro. Já está pronto. É só formatar.
    Abçs.

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  2. Querido amigo!
    Tu és só incentivo e isso faz muito bem ao meu ego!
    Obrigada. Preciso de amigos assim como tu.
    Volta sempre.
    Abçs. tb.

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