Sempre fui distraída, meio desligada daquilo que não me chamasse, com letras garrafais, a atenção. Em noites enluaradas, quando me sentia planar sobre tudo e todos, ou quando me deparava com multidões, esse meu pequeno e, às vezes, trágico defeito de concepção, eclodia como uma bomba. Era nessas ocasiões que cometia coisas difíceis de serem contadas porque não teria garantida a credibilidade. O conhecimento desse meu lado tragicômico ganhara fama e se alastrara. Algum conhecido, quando me encontrava, permanecia de prontidão aguardando que algo eu aprontasse. Não foi diferente naquela noite de diversão.
Depois de esperar, por longo tempo, a abertura das portas do clube, onde aconteceria a apresentação de Altemar Dutra, um dos mais famosos cantores à época, começamos a nos deslocar lentamente, tantas eram as pessoas que ali se encontravam. Em grandes concentrações de gente, é comum encontrarem-se pessoas conhecidas ou que não se viam há tempos. Quando começou a movimentação, o meu marido e eu nos defrontamos com amigos a quem não víamos há séculos. Junto com eles, um jovem estrangeiro, que não falava português e pouco o entendia. Felizes com o reencontro, abraçamos, entusiasticamente, os primos e o desconhecido.
Foi justamente quando a fila andou que mais um “acidente de percurso” tomou formas e se corporificou. Conversando animadamente, enquanto me deslocava, adiantei-me ao meu marido e sem perceber, dei a mão para o estrangeiro enquanto ouvia e contava coisas da vida dos parentes e da minha. Como ia o casamento, se teríamos ou não filhos, como estavam pais e irmãos entre outras trivialidades. Atrás de mim, um jovem bonito e saltitante, acenava desesperado enquanto gritava coisas que eu não entendia. Fui me distanciando dele e, mais animada com o que os amigos relatavam, não me dei conta de que algo estranho estava acontecendo. Quanto mais eu sentia a mão ser apertada, retribuia o carinho, feliz com a demonstração de afetividade.
Estava quase à porta de entrada do clube, quando uma amiga me perguntou se já havia trocado de marido. Naquele momento, dei-me conta de que o braço que me enlaçava, fortemente, o pescoço não era o do César Augusto. Apavorada, procurei por ele que, raivoso e enciumado, chamava por mim, aos berros. Constrangida, tentei explicar à amiga de que aquela era mais uma de minhas trapalhadas. Se ela acreditou, não sei. O difícil foi convencer o meu marido de que não notara que o outro não era ele...
Quanto ao estrangeiro, se passou o braço com tanta intimidade sobre meus ombros, quando lhe ofereci a mão e lhe retibuí, com igual extensão, os efusivos apertos, deve ter imaginado que poderia apossar-se do corpo todo. Ou, talvez, recordando-se da recepção calorosa que os esquimós fazem a qualquer visitante, tenha acreditado que, no Sul, essa era uma prática usual e demonstrativo da generosidade gaúcha.
Amiga, distraída já percebi que você é, mas trocar de "marido"?
ResponderExcluirAdoro as suas histórias, a fluência, a capacidade de gerar suspense, o vocabulário rico e o seu jeito muito pessoal de "tirar sarro" da própria vida. Também escrevo, vou mandar uns textos para você corrigir.
Beijos. Maria Adelaide
Bom dia, Maria Adelaide!
ResponderExcluirQue maravilha levantar cedo e encontrar esse teu comentário. Lisonjeadíissima fiquei com os elogios a que, efusivamente, agradeço.
Ficarei esperando os teus textos e, mesmo breve, o teus escritos acima estão impecáveis. Assim devem ser os artigos que escreves.
Um beijão.
Arlete