sábado, 28 de agosto de 2010

Histórias que vivi 5

Nesse esplendoroso palco da vida, nem sempre fui a atriz principal do espetáculo, cujas histórias com minhas trapalhadas venho narrando. Em significativas passagens, fui reles coadjuvante, tentando fazer do limão uma bela e gostosa limonada. Irei intercalando fatos vivenciados em que fui a “estrela” com outros, que permaneci nos “bastidores”.

A história de hoje exige, antes, o relato de situações preliminares. Enquanto professora, priorizei o difícil ato de ensinar com educar, incentivando a criatividade e o conhecimento. Ressaltava aos meus alunos de que tudo o que lhes ensinava devia ser aperfeiçoado e aprofundado por eles. Incentivava também que o aprendido deveria servir para alguma coisa e que o pleno domínio da fala e da escrita era a chave de ouro capaz de abrir muitas portas. Ia além, se caprichassem, todas as portas almejadas abrir-se-iam abatidas por eles. Ensinava-lhes que o querer e o poder não eram máximas inquestionáveis, ou seja, para alcançar o sucesso, o querer exigia grandes esforços pessoais e, em consequência, inúmeros sacrifícios. E estudar muito era um deles.

Entremos no relato. Estava trabalhando com meus alunos a escola literária, chamada Romantismo, traçando um paralelo com textos do Modernismo. Para fazer uma atividade diferente e que despertasse o gosto pela leitura, convidei-os a encenarmos o lindo poema “Navio Negreiro” de Castro Alves. O texto é longo, mas valerá a pena lê-lo até o fim.

Não sei se isso acontece ainda hoje, mas o voluntariado se centrava nas meninas. Apenas dois garotos se disponibilizaram. Foi então que me vali do famoso “jogo de cintura”. Fiz a seguinte proposta: os meninos atuariam em “Navio Negreiro” e as meninas fariam parte da encenação de poemas de Vinícius de Moraes, desafiando-os para ver quem se sairia melhor. Não deu outra. Inscreveram-se tantos garotos que precisei sortear os vinte de que precisava.

Perdi muitas noites bolando o como iríamos apresentar o poema de Castro Alves. Dormia e acordava pensando sobre o tema. Foi através de um sonho que nasceu a criação. Imaginei os meninos com uma espécie de veste, em que um lado seria branco e o outro, preto. O mesmo aconteceria com o rosto.

Estávamos a ensaiar exaustivamente, quando fomos interrompidos por uma mãe furiosa, alegando que eu isolara o filho dela por ser portador de um defeito. Expliquei-lhe que os artistas haviam sido escolhidos mediante sorteio. O que ela argumentou e com inteira razão? “O meu menino e o outro colega foram os únicos que se ofereceram para te ajudar!”. Rendida aos argumentos dela, abracei-a comovida e incluí o seu garoto no elenco.

Se arrependimento matasse, seria morta a pedradas por mim mesma e pelos outros atores. O piazinho, além do lábio leporino, tinha problemas gravíssimos de lateralidade. Não sabia diferenciar o lado esquerdo do lado direito e a encenação castreana fora criada sobre movimentos corporais e agilidade. Minha ideia era esta: eu recitaria o poema e os alunos, com gestos e movimentos corporais, iriam dramatizando o texto. Auxiliada por um capitão do exército, tão empolgado quanto eu, pai de um deles e exímio violinista, começamos os ensaios. Imaginem o som muito bem executado de um violino, um jogo de luzes bem direcionado, um poema lido com perfeita dicção e emotividade. Tudo parecia perfeito. O menino com problemas, depois de muita batalha em cenas repetidas até a exaustão, aprendeu a parte dele.


Havia uma passagem em que era simulada a viagem da África para o Brasil, cujo navio carregava os escravos. Mar bravio, os meninos deveriam simular o movimento do barco e das ondas com tecidos e movimentos. Acreditando estarmos prontos, fizemos a apresentação de estreia no Salão Nobre da escola. Para acalmar os nervos de todos nós, a esposa do capitão, uma jovem senhora, tão bela quanto solícita, levou-nos chá de erva cidreira e gostosíssimas rosquinhas de farinha de milho. Como o mais nervoso era o garotinho do lábio leporino, a gentil senhora caprichou nas xícaras de chá para ele. Tragédia à vista! A apresentação se desenrolava muito bem até que o já famoso garoto sentiu vontade de urinar. Minha nossa!

Desconcentrou-se completamente.
Quando era para virarem à direita, o malvado virava para a esquerda. Quando deveria avançar, o piá recuava. Quando deviam se deslocar mais rápido,
caminhava apertando as pernas para conter a vontade de fazer xixi. Se deviam levantar, o bichinho se acocorava. E muito mais... O mais perfeito trapalhão!

Como eu ficara atrás do palco, recitando o poema ao microfone, ouviam a minha voz, mas eu não os enxergava. Escutava apenas as gargalhadas do público presente, alunos das outras séries e os próprios colegas, Calminha, calminha, movida pelo chazinho de cidreira, continuei declamando os versos cada vez melhor e o fazia com ascendente emoção.
Terminado o espetáculo, fomos aplaudidos em pé.

Curiosa, quis saber por que o público rira tanto. Quando me contaram o acontecido, achei graça também. Acertamos que ensaiaríamos à noite, para eliminar as falhas. Por que o sucesso foi significativo e se espalhou, outras escolas nos convidaram para apresentar o Navio Negreiro para seus alunos e pais. A primeira apresentação após a estréia aconteceu no Medianeira, colégio de freiras e o mais chique da cidade. Caprichamos. Tudo saiu como o ensaiado, só que, ao final, fomos aplaudidos com relativo entusiasmo. O que dera errado? Por que não repetimos o mesmo sucesso?


Foi após exaustiva análise junto ao capitão e esposa, ouvidos alguns professores que assistiram à apresentação de estreia, que chegamos a seguinte constatação. O primeiro espetáculo uniu emoção e trapalhada, o que gerou alegria. Os erros cometidos tiraram-lhe a sisudez e o enriqueceram. Baseados nas falhas, aperfeiçoamos, aumentamos alguns recursos cênicos e aproveitamos o artista trapalhão que, de coadjuvante, passou a ator, cômico, mas principal.


Quando o João deveria gritar “Terra à vista!”, trocamos por “Escravo mijão e "cagão" à vista!”, porque descobrimos que, ao ficar nervoso, o guri sentia uma incontrolável vontade de ir ao banheiro. Saia do palco, fazendo todo o tipo de gestual cômico. Enquanto ele se aliviava, a apresentação continuava, porém os espectadores acreditavam que tudo fazia parte do espetáculo. Na verdade, fazia. Unimos o útil ao agradável e deu certo!

Foram justamente as trapalhadas de um menino antes cheio de recalques, depois um jovem feliz, que ficou assegurado o brilhantismo da apresentação escolar. De Santiago, passamos a nos apresentar nas cidades vizinhas e tudo por conta do Exército Brasileiro, cujo General, entusiasmado com o meu dinamismo e criatividade, disponibilizou-me toda a logística necessária: transporte, alimentação, soldados para me auxiliarem na manutenção da ordem e da disciplina durante as apresentações. Até um holofote, cujo operador mudava a cor das luzes usando papel celofane colorido. Viramos uma trupe unida e feliz. E isso aconteceu no auge da ditadura militar, quando eu já estava fichada no DOPS...

Ah! Esqueci de informar: a maioria dos atores do Navio Negreiro, hoje, são pessoas muito bem sucedidas. Há engenheiros, professores universitários, políticos. O ator trapalhão? É um médico renomado. Às vezes, quando me recordo desse acontecimento, imagino o que seria dele, seu eu não o tivesse inserido no espetáculo.

É por esta e por outras que adorava e adoro ser professora! Quando encontro ex-alunos, vejo, nos olhos deles, a mesma admiração que me votavam no passado, e, nos meus, leem o profundo afeto que sentia e sinto por todos eles. É por isso, também, que a minha vida se trancorreu e continua transcorrendo como se atuasse em um palco inteiramente iluminado, cujos aplausos são o reconhecimento pela minha dedicação enquanto educadora. A isso soma-se o amor sincero, e que fazia questão de receber, generosamente distribuído entre os alunos.

9 comentários:

  1. Oi, a história de hoje não apenas me fez rir como provocou um enorme emoção. O final foi apoteotico. A maneira como voce conta é de uma leveza e graça que bem mereceria um livro. Vc nunca pensou sobre isto?
    Abçs.

    ResponderExcluir
  2. Oi, amigo!
    Obrigada pelos elogios. Quanto ao livro,não ousaria tanto e nem tenho talento para isso. As histórias que narro estão servindo meramente como catarse e muita diversão.
    Um ótimo domingo.
    Abraços também.

    ResponderExcluir
  3. Já fiz um comentário há muito tempo querendo ser seu filho. Hoje queria ser seu aluno. Um ótimo domingo. Abçs.

    ResponderExcluir
  4. Oi, adorável amigo:
    Se te identificas com meus textos e comigo, privilegiada seria eu em ser tua mãe e, podes ter certeza, dedicada PROFESSORA.
    Estarei sempre te esperando e lisonjeada com teus elogios.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  5. Mana sempre batalhadora mana!
    Adoro tuas estórias gostaria de poder eternizá-las em livro. Pena que nem jogo na loteria para ter um extra, mas se o tivesse com certeza tudo o que escreves transformaria em livros.
    Ah! lembras aquela da semana da pátria que emocionamos a avenida com o desfile sobre o centenário da aviação. Tu grávida subiste no telhado do Clube União para coletar penas de pombas, para fazer as asas do ìcaro (encarno no Roberto Lindo Jauris)?
    Que saudade de ti, de nós daquela vida sem maldades, com pureza e idealismo
    Bjus
    Adejane

    ResponderExcluir
  6. Dordorleti!

    Não havia lido o comentário sobre o desfile da semana da pátria, mas lembrei-o. Jamais esquecerei o tema era centenário da aviação, caprichamos na coleta das penas e na confecção das asas. Eu era deslumbrada pelo RJ ele nunca soube e nem esqueci do motivo de tamanha dedicação. Lembro das minha amigas com fantasias típicas do paises do mundo.
    Como não tínhamos grana para fazer uma fantasia para mim, tu bolaste uma roupa preta calça e blusa e colocamos as medalhas de um atleta militar teu aluno, pois não é que perdi um das medalhas, e passei a tarde do desfile junto com a Suzaninha e a keka procurando a medalha, lá no estadual, percorremos todo o gramado e encontramos a bandida estatelada numa valeta. Quase morri de medo de ser castigada pela mãe, mesmo tendo já quase 15 anos.
    Mas foi muito lindo jamais vou esquecer daquele desfile, pena que na época não havia filmadoras como hoje. Aquilo foi um exemplo de cidadania e amor à Pátria mesmo em tempos de ditadura.
    Que belas lembranças, voltei para Santiago em minutos.
    Bjus te amo muito, eu também era muito trapalhona, sempre perdendo as coisas, hoje preto mais a atenção, cansei de perder.
    Adejane

    ResponderExcluir
  7. Irmãzinha muito amada:
    Como há histórias fantásticas que vivenciamos, não? Assim que fores te recordando, dá-me um toque, que as reproduzirei aqui. Lembras da vez que precisávamos de um menino negro para representar o Negrinho do Pastoreio e recorremos todos os bairros da cidade não encontramos nem criança, nem jovem? Foi então que constatei Santiago ser uma cidade de brancos. Se aprecesse uma pessoa negra, não era daqui. O pior que isso continua...
    Obrigada pelas palavras de incentivo.
    Beijos bem barulhentos.
    Ah! Tu irias adorar as minhas palestras. Canto, danço, dramatizo, faço o público rir e chorar! E quanto mais vejo que estou agradando, tu imaginas o "the end"?

    ResponderExcluir
  8. Q lindo, Arlete!!! Adorei mais essa!! Tenhas uma semana maravilhosa!!! Tava pensando aqui... até q podia sair um livro desses contos de vida real, né?! Beijo com carinho; Carlota :D

    ResponderExcluir
  9. Carla, Carlotinha:
    São tantas histórias que vivi, como canta o Roberto Carlos, que até renderiam um bom livro.Todavia, o meu medo maior é que as compradoras seríamos apenas tu e eu. Ahahahah!
    Mas não só trapalhadas tenho para narrar. Em minha vida, tanto pessoal como profissional, há fatos de arrepiar os cabelos, uns, de emoção; os outros, de apreensão!
    Em tua homenagem vou narrar uma estranhíssima situação que vivi junto a colegas da Aliança Francesa em Santa Maria. Se sobrar tempo hoje, poderás ler o escrito na quarta-feira.
    Um beijão

    ResponderExcluir