Dentre as cunhadas de quem eu mais gostava, sem medo de chegar em segundo lugar, a campeã era a Ironda. Amiga verdadeira, meio mãe e adorável meio sogra. Bem mais velha do que eu, amparava-me, protegia-me e estava sempre disposta a me prestar qualquer tipo de ajuda, inclusive financeira. Em compensação, tudo o que me pedia, soava para mim como se ordem fosse.(Quando faleceu, fui tomada de tamanha tristeza que, nem mesmo a passagem do tempo, conseguiu atenuar.)
Apesar do imensurável amor que nos unia, havia um aspecto de meu jeito de viver que ela não tolerava: a minha resistência em participar de velórios, pelos quais a minha adorável cunhada revelava um prazer quase doentio. Segundo ela, era num momento de vulnerabilidade e sofrimento, que se conheciam os verdadeiros amigos. E ia além, se não demonstrássemos um interesse incondicional no nascimento e na morte de afetos, dificilmente teríamos a retribuição da generosidade. O grande medo dela era que, se eu morresse, haveria pouquíssima gente a me velar, visto que eu não marcava presença nos passamentos fúnebres.
A mesma admiração que eu tinha por ela, também sentia o meu marido, irmão do seu esposo. Este, por ser bem mais velho, filho de primeiras núpcias do pai, praticamente, havia criado aquele, por isso, mantinha sobre o mesmo um apaixonante controle. Como eu era arredia a enterros e a todo o aparato que os antecedia, ao morrer algum parente, a primeira pessoa que a Ironda convocava para acompanhá-la era o César Augusto. Ambos adoravam as noitadas ao pé do falecido. Deliciavam-se com as histórias ou anedotas indefectíveis contadas por alguém em madrugadas de vigia ao morto.
A minha desgraça aconteceu numa viagem em que o César teve que ir a Porto Alegre fazer um curso de aperfeiçoamento. No ínterim de sua permanência na capital, morreu um primo dele e, por afinidade, da Ironda também. Estava no colégio, onde ministrava aulas, quando recebi um recado da diretora, chamando-me à secretaria. Assustada, imaginei tratar-se de algum problema com, na época, meu único filho. Desci com o coração dando saltos olímpicos de campeão.
Que nada! Era a cunhada "veloreira", intimando-me a representar o meu marido na morte do parente. Constrangida, informei-lhe de que só poderia ir ao velório, depois de terminado o meu horário docente e à noite. Passado o susto, dei-me conta de que não perguntara a ela o local do evento.
Como já afirmei em outro texto, palavra dada por mim é palavra empenhada. Terminado o meu turno de aulas, dirigi-me até a capela fúnebre onde velavam o tal parente. Entrei na primeira porta aberta que encontrei. Inicialmente, estranhei a exiguidade do espaço, o acanhamento do caixão, a economia das flores e o aspecto humilde dos presentes. (O primo era um homem rico, cuja família gostava de ostentação, apesar de notoriorizar-se como um "mão de vaca". Além do mais, eu mantinha estreitas relações com a família. O que significa afirmar que conhecia a maior parte de seus integrantes e os que estavam reunidos ao redor do esquife em nada me faziam identificar algum deles). O estranhamento era óbvio. A aparência, as roupas que eu usava contrastavam com as pessoas e o ambiente. Meio sem jeito, procurei um lugar para sentar, enquanto buscava com o olhar a minha cunhada, a viúva, os parentes e o irmão do primo morto.
Mal me acomodei, as pessoas se dirigiram até onde eu sentara e, algumas tímidas, outras efusivamente, despejavam sobre mim as suas condolências. O cortejo se seguia e eu, bastante desconfiada, passei a questionar mentalmente se não estavam me confundindo com a viúva. Quando eu tentava me levantar, na esperança de encontrar, fora da sala, algum conhecido, vinha alguém, recém chegado, com os "meus pêsames"!
Creio que quase duas horas já haviam se passado. Talvez nem tantas, por ser escorregadio e traiçoeiro, o tempo, naquele momento, parecia-me uma eternidade. A sensação que continuava a martelar era a de que estava sendo confundida com alguém. E "dê-lhe" "meus pêsames"!
Começava a me doerem as pernas, as costas, tudo. Foi então que, para ver se sentia algum alívio para as mazelas a que fora acometida, aproveitando a curiosidade de alguém que elevara o lenço branco que encobria o rosto do falecido, levantei-me para olhá-lo também. Surpresa! No lugar do primo, estava uma senhora, cujos pelos sobre os lábios mais pareciam ralos bigodes, a boca entreaberta num rito macabro, deu-me uma espécie de náusea, imediatamente contida, a magreza e a cor da finada contrastavam com a robustez do parente.
Foi, exatamente no momento em que eu fazia a infeliz constatação de que errara de velório, que passou, em frente da pequena sala, Miguel, um peão da fazenda do primo morto, chegado a uma caninha, o qual aproveitava os velórios para abastecer o voraz apetite etílico. (Apesar disso, gostava imensamente dele, não só por que contava, com extrema criatividade e verve, histórias de assombração, por seus relatos sobre o sucesso com mulheres do meretrício, por sua gentileza tosca em momentos de sobriedade, mas, e talvez muito mais por isto: sempre que me encontrava, cavalheiro à moda antiga, beijava-me a mão, dizia que eu era linda e que o César era um sortudo!)
Quando me reconheceu, dirigiu-se ao velório em frente, gritando assim: "Ironda! Ironda! A Arlete está comendo o defunto errado." (Na sua confusão mental, motivada pela bebida, trocara velando por comendo.) Creio que, gritando assim, entrou no verdadeiro funeral em que eu deveria estar. De lá saiu, arrastando, com ele, a minha cunhada. Esta, assustada, dirigiu-se até mim: "Criatura, faz horas que te espero. Tu errou de morto. Este não é o teu!" Não sei se quis mencionar o primo ou o velório.
Outra confusão. As pessoas que, comovidas, cumprimentaram-me com os “meus pêsames”, realmente, haviam me confundido com a filha da falecida, casada com um fazendeiro do Paraná. Como a sala mortuária não era muito grande, tudo o que se falava era ouvido por todos, a cunhada se sai com mais isto: "Pede desculpas pra eles e sai! Os parentes do César já estão perguntando por ti!"
Quando fico nervosa, sinto imensa e indisfarçável vontade de rir e se me acomoda na cabeça, sem pedir licença, uma tremenda confusão. Troco tudo, letras, nomes, pessoas, tremo, transpiro. Tentando me controlar, caí na asneira de fazer um pequeno discurso de escusas. Foi a minha perdição. Nervosíssima, comecei assim: "Senharos e senheros!"
Percebendo a troca silábica das letras, cai numa risada inoportuna. Buscando, no fundo de minha alma pagã, um pouco de auto controle, ainda se retorcendo em minha mente a gritaria do “bebum”, lasquei mais esta: “Desculpem a trepalhada, mas acho que comi o morto errado mesmo!" Outra infeliz mancada! Não parei por aí. Como dizem os mais sábios: "Em boca fechada não entra mosca"... e a minha insistia em se manter "aberta".
Lágrimas escorriam-me pelo rosto porque tentava abafar o riso. Como todo mundo sabe, o ato de rir é terrivelmente contagiante. Quanto mais tentava me controlar, mais as lágrimas brotavam e, com elas, uma risada nervosa ia tomando conta de mim e se alastrando por todos os que acompanhavam aquela esdrúxula cena. Naquelas alturas “do campeonato”, todos os amigos, parentes e "volúntários" choravam comigo, mas de tanto rir também.
Final da história: depois que readquiri o controle e sufoquei a risada, dirigi-me a um a um dos presentes, abraçando-os com carinho e pedindo desculpas pela minha distração e trapalhada. Sabem o que aconteceu ainda? Ao me despedir e tentando limpar a barra com os familiares, fechei o espetáculo com chave de ouro falsificado. No lugar de dizer boa-noite, nervosa, troquei por "Boa morta para todos!" Vejam se pode?
Ah! Imaginem como foi a minha entrada "triunfal"no outro velório, o verdadeiro? O Miguel se encarregara de espalhar "que comi o morto errado"!
Ahahahahah, essa eu não sabia foste campeã!
ResponderExcluirNão se compara a grossura do Neri Machado, lembras as piadas que contavas dele, algumas lembro e conto para todos.
Hoje estava meio abatida com alguns acontecimentos da minha vida de altos e baixos, mas tu conseguiste mais um dia animar meus ânimos e me fazer dar gargalhadas sozinha. Meus colegas estão achando que estou pirando com a idade.
Enfim repasso teu blog para eles que estão achando o máximo.
Mil Bjus
Adejane
Oi, Janinha:
ResponderExcluirVerdade, nessa história, levei o troféu de trapalhona. Acho que, nesse aspecto, só me ganhava a querida amiga Itelman Ribeiro. A coitada! Além de trapalhona, era pra lá de fiasquenta.
Sabes, irmãzinha, nunca tive a coragem de perguntar para o Decesari e aos filhos se não se envergonhavam de mim por eu ser desse jeito. Claro que eu não contava as mancadas como essa, salvo se algum deles estivesse junto. Ficaram sabendo depois de anos, quando aprendi a rir da própria cara. Então, deixei de sentir vergonha e me larguei. Podes imaginar a Dordoleti sem censuras!?
Um beijão. Amanhã tem mais.
Meu deus do céu....estamos as gargalhadas aqui no escritório...tá louco....muiiiito boa essa...pior é que te conhecendo do jeito que te conheço....todos esses detalhes são perfeitamente reais e verdadeiros...não é apenas uma história...é e foi um realidade....ahahahahahah
ResponderExcluirMUIIIIITO BOM....mas ainda quero ver contada aqui aquela nossa história da dona da loja...deboxada por nós até hoje!!
Te amo!!
Arlete, querida.... chorei de rir.... foi incrível!!! Mto show!!!! O bom da vida é isso, viver intensamente e ter lindos relatos para contar. Sim. Alguns fatos, no momento q acontecem, até poderiam ser constrangedores, mas o q importa é nossa atitude para com eles e, qto a isso, sei q tiras todos de letra!!! Amei esse aqui! Beijo grande com carinho; Carla.
ResponderExcluirFilhotinha:
ResponderExcluirEssa é a mais pura das verdades. Deixei de contar como foi a minha entrada no velório verdadeiro, porque pareceria, aí, sim, pura fantasia. (Se te contasse os "horrores" que aprontei na infância e adolescência devido ao problema de ataxia locomotora de que eu não sabia ser portadora e por que levei surras memoráveis da Zaida, tu ficarias horrorizada!) Essas eu não conto. Deletei-as , porque me faziam sofrer e geravam rancores...)
Carla, Carlotinha:
ResponderExcluirEstou tão viciada nos comentários que, antes mesmo de ler o ZH, corro para ver o que escreveram sobre essas minhas loucuras. E o jeito que tu e a Dani comentam, enchem a minha alma pagã,(como adoro classificá-la) de alegria.
Amanhã, em homenagem a Daniella, postarei a história da loja.