Voltei, meus queridos, depois de ficar curtindo a minha netinha Marianna enquanto a minha filha e o meu genro se deleitavam no Chile. Saudosa deste espaço, retorno com o conto que publiquei abaixo. O final dá muito o que pensar...
Disk-pizza
A chuva espalhava o sangue brilhante que vazava do capacete. Seu dono estava estendido no chão imóvel. As pizzas atiradas no asfalto negro, rodelas de calabresa e tomate espalhadas em volta dos discos fugidios que se misturavam ao sangue como glóbulos gigantes. Logo apareceram várias pessoas para socorrê-lo, na maioria outros motoqueiros que se juntavam feito formigas operárias. Outras se aproximavam, insaciáveis desta mórbida rotina. Havia ainda as que preferiam escapar enquanto desse tempo, fugiam do trânsito, do outro, da proximidade da realidade.
— Enganchou na traseira do caminhão, vinha costurando feito louco.
— Também, se não fazem a entrega no tempo, tem que pagar pela pizza.
— Meu Deus, onde é que a gente vai parar!
O motorista do caminhão permanecia imóvel, olhos órfãos, sem entender ainda o que havia acontecido, lembrava-se apenas do leve impacto atrás do caminhão.
— Alguém chama o resgate!
— Tem que tirar esse pau da cabeça dele.
— Não pode, se tirar ele morre.
Sentia uma dor leve, um frio fino que lhe penetrava os caminhos da alma. A chuva grossa refrescava a pele morena no asfalto ainda quente do dia de verão; entre as pálpebras semicerradas, viu estrelas faiscando nos postes estampados contra a negritude da noite. ‘Pai, você me dá uma boneca que faz xixi no meu aniversário?’ ’Mas minha princesa, é muito cara, não tenho dinheiro.’ ’Então você vai no banco e pega!’ Aqueles pequenos olhos suplicantes lhe davam pistas da sua existência.
— Vê se tem documentos no bolso.
— Melhor ligar logo para o restaurante.
Sentiu o cheiro da chuva e lembrou-se do subúrbio de terra batida onde crescera. Os pés enlameados a caminho da escola nos dias de chuva nunca chegaram ao final do ensino básico. Não havia tempo para aprender além do que estivesse no seu caminho. Urgia sobreviver à sua sina. Lutava para sair do vácuo, mas só ali, em cima das duas rodas, sentia vida, ainda que malfadada. Fazia entregas, uma após a outra até a última, a de sua vida.
— Pizza D’Ore, boa noite.
— Um motoqueiro que trabalha para vocês sofreu um acidente.
— Morreu?
— Não dá para saber. A chapa da moto é BRB 3355.
— É o Josoaldo. Vou mandar fazer outra pizza.
Giselle Ferreira
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