Escrevi este texto e o achei um continho meio sem graça. Publico-o por sua crueza de realidade.
O estranho mundo virtual
A menina estava sentada à mesa, sem se importar com o que se passava ao derredor. O prato exuberante de batatas fritas jazia intocado como se, em frente a ele, não existisse a gula infantil. Para despertá-la do inóspito mundo virtual em que se enchafurdara, a avó ofereceu-lhe uma colorida e enorme taça de sorvete. A garotinha, no entanto, tudo ignorava. Aos poucos, passível ao tempo que se apresentava implacável, a guloseima que, em outras bocas, seria irrecusável, foi se deteriorando. Nacos de chocolate e o deslumbrante colorido da pasta gelada de morango, de creme e de pistache foram se convertendo num líquido viscoso e degenerado.
Mais uma vez a paciente avó chamou-a, tentando fazê-la voltar ao mundo das pessoas reais. No lado direito da mesa, a mãe da menina, absorvida no passar de dedos no celular, navegava pelo facebook e o twitter, inteirando-se de assuntos triviais e se comunicando com os amigos. Nunca se teve tanta noção (equivocada) de se ter tantos amigos. A lista deles se espicha a cada dia, beirando à complexidade. Será possível estabelecer contato com todos eles? Só se o dia contasse com mais de sessenta horas! Mesmo assim, certamente, alguém seria eclipsado ou esquecido.
À esquerda, o pai, notebook sobre a mesa, resolvia negócios em New York, Hong Kong, Dubai, Rio de Janeiro, Londres e onde houvesse negócios a negociar. Sentindo-se abandonada, mesmo acompanhada por seus amores, filha, genro e neta, Mara Regina, para não se sentir tão só, sorriu para a jovem mulher que amamentava um bebezinho. Estarrecida, percebeu que, amparando a criança com a mão e o braço esquerdos, na mão direita, empunhava um pequeno aparelho eletrônico. Um celular ou um tablete. Mal retribuiu o sorriso, retornou ao mundo virtual.
Olhando pelo entorno, deu-se conta de que, na maioria das mesas, a maioria das pessoas não conversava. As que já haviam recebido a refeição solicitada, comiam em silêncio. Ao lado do prato... Um celular. Vez ou outra, entre uma mordida a algum alimento, davam uma mirada e, sem poderem se controlar, digitavam alguma coisa ou visualizavam algo. Até a moça que fazia o controle dos pedidos e contabilizava as contas a pagar, nos mínimos intervalos que lhe sobrava, puxava um aparelhinho eletrônico e perdia-se pelo mundo virtual. Um oi ou a voz de algum garçom ou cliente traziam-na de volta ao mundo dos vivos. A denominação mais adequada para definir aquelas estranhas e lunáticas criaturas não seria melhor a de mortos-vivos ou virtuais-vivos?
Absorta na contemplação da estapafúrdia cena, tão diferente do tempo em que, no restaurante com os pais, na juventude, o som das vozes que se faziam ouvir todas ao mesmo tempo, dificultava a audiência tal era a alegre algazarra que tomava conta do ar. Sem quer aceitar e, fazendo um esforço que ultrapassou os limites do bom senso, deu-se conta de que não se adaptaria àquele jeito tão introspectivo de viver. As pessoas tinham a caixa eletrônica repleta de amigos, mas estavam, irremediavelmente, sós.
A música suave que se evolava do piano, tocada por hábeis e talentosas mãos, deslocava pelo ar, partituras de Beethoven, de Liszt, Bolero de Ravel, Besame mucho, Love me tender, Detalhes. Nem a mais perfeita e melodiosa canção despertava o interesse auditivo e a sensibilidade dos internautas. O belíssimo som, que rasgava os ares, parecia ser tocado para ninguém ouvir. Intocada pela indiferença, encantando-se com o magnífico recital, Mara Regina certificou-se de que ainda estava viva. E bem viva. Aquele mundo de silêncio e olhos fixos numa telinha de algum moderno aparelho eletrônico não era o lugar em que queria viver. Nem compartilhar com criaturas destituídas de vida mortal.
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